segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Razão e relinchos

Michel Laub



Existe um livro de Schopenhauer chamado "Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão" (ed. Topbooks). Um dos riscos de escrever uma coluna de jornal hoje, ou de opinar em qualquer instância pública, é o oposto: ser ignorado, quando não perseguido e açoitado num pelourinho de grunhidos, relinchos e cacarejos, a despeito da mais cuidadosa argumentação.

Convencer alguém a mudar de ideia não é algo comum em nosso tempo. Basta uma semana nas redes sociais para perceber: militantes pró e contra aborto, descriminação da maconha, eutanásia, cotas, cabras e sobrenomes Guarani-Kaiowá, a maioria está ali para confirmar certezas prévias ou se irritar com quem diz o contrário.

Uma radicalização que também nasce do meio: para que os palpites sejam ouvidos entre tantas vozes, a tendência é que o adjetivo prevaleça sobre o termo exato, a ênfase sobre a ponderação, as regras generalizantes sobre as nuances que tiram a graça e o colorido das frases e slogans.

Num cenário assim, não é difícil adotar um tom nostálgico ou apocalíptico. Talvez se possa lamentar o fim de uma suposta era de ouro dos debates elevados.

Prefiro seguir achando que a humanidade não mudou tanto: apenas passamos a ouvir, graças a uma tecnologia muito mais benéfica que perniciosa, que criou possibilidades infinitas de compartilhamento de informação, as conversas antes restritas a botecos. É um choque descobrir que amigos são tão ignorantes, levianos ou idiotas, claro, mas até isso tem seu lado positivo.

De certa forma, estamos diante de um problema das democracias maduras, que já superaram -ou deviam ter superado- questões graves referentes à liberdade de discurso. Ou seja, não estou falando da lei, que proíbe censura, calúnia, injúria e difamação. Nem da ética, que repele a desonestidade intelectual sem que seu autor precise ir para a cadeia. Estou falando é de etiqueta, a "pequena ética" que em sua face menos elitista propõe tolerar os modos alheios -um caminho para, quem sabe, prestar atenção ao que eles representam.

Isso porque linguagem e tom -que são maneiras de segurar os talheres num debate- nem sempre arruínam as ideias por terem aparência tosca. Dá um pouco de cansaço, por exemplo, quando bikers defendem suas propostas para o trânsito com tamanha agressividade. Ou quando a pecha de "fascista", misturada à teoria política da salmonela, aparece na discussão sobre bisnagas de plástico proibidas em feiras e lanchonetes. Ainda assim, tudo a favor de ciclovias e meios alternativos de transporte, e abaixo aqueles saquinhos tristes de ketchup e mostarda.

Num ensaio de 2005, um nome insuspeito quando o tema é a consequência das palavras -Salman Rushdie, que passou anos escondido por causa de um livro considerado blasfemo pelo Irã- escreveu: "Na Universidade de Cambridge, me ensinaram (...) que não se deve ser grosseiro com a pessoa com quem se discute, mas se pode ser extremamente grosseiro em relação a tudo que ela pensa". Parece uma citação descabida num texto sobre etiqueta. Na verdade, é a lembrança de uma regra ideal em debates: deveria importar o que é dito, e não quem diz. É o que impede um interlocutor de ser desqualificado por gênero, crença, classe ou etnia.

Forçando um pouco a boa-fé, por que não abstrair também o partido em que o interlocutor vota, a empresa jornalística onde trabalha, os amigos que tem? Ou suas deficiências retóricas, sua ingenuidade, sua queda pelo vitimismo, pelo sentimentalismo, pelo insulto? A distinção total entre texto e autor é utópica, e o conteúdo de uma ideia pode ser indistinguível de sua forma, e às vezes tudo se resume mesmo a interesse ou tolice, mas o esforço para enxergar um pouco além disso é sempre virtuoso. Pensar com liberdade, o melhor atalho para identificar o lado certo numa disputa, passa por ouvir e aprender com vozes dissonantes. Mesmo que o timbre delas seja mais frequente em zoológicos, penitenciárias e hospícios.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/12/2012.

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