quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Formas diversas de defender a democracia e a liberdade de expressão

O presidente da OAB/SP Luiz Flávio Borges D’Urso, em nome da democracia e da liberdade de expressão, participou de dois “fronts” recentemente. Esteve no ato que lançou o “Manifesto em Defesa da Democracia”, que aponta o presidente Lula e seu governo como ameaças às instituições democráticas, e entrou com ação para proibir a exibição da série “Inimigos”, do artista Gil Valente, na Bienal de São Paulo, sob a alegação de que a obra faz uma apologia ao terrorismo. Juro por tudo o que é mais sagrado que também me são caríssimas a democracia e a liberdade de expressão, não obstante, tenho posição absolutamente distinta da do senhor D’Urso em ambas as “causas”. Sobre o ato, acho um exagero, uma tempestade em copo d’água, não conseguindo enxergar nem de longe que a democracia e a liberdade de expressão estejam em risco no Brasil. Pelo contrário, a ascensão social de camadas mais baixas observada nos anos Lula contribui sobremaneira para a democracia; pelo menos, para quem vê esse regime sob a ótica social, não apenas formal. Quanto à proibição (censura?) das obras artísticas, há que se atentar aos argumentos do presidente da OAB/SP, a seguir.

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, de 25/09/2010, intitulado “A lei veda a liberdade absoluta”, D’Urso defende que a liberdade inerente à democracia não pressupõe ausência de limites ao comportamento dos indivíduos. O argumento segue o senso popular segundo o qual o direito de um vai até onde acaba o do outro. Assim, tratando-se de obras artísticas, a liberdade de criação, desde que restrita à esfera exclusivamente privada, não pode ser cerceada; porém, quando tornadas públicas, colocadas ao alcance das pessoas, não podem atentar contra o outro (contra sua honra, sua moral, sua integridade, etc.). Da mesma forma, exemplifica o presidente da OAB/SP, que não é possível permitir a exibição de filmes pornográficos em rede aberta de televisão, assistida inclusive por crianças, sob a aura da liberdade de expressão ou da arte. Ninguém, inclusive os mais poderosos, nem nada, inclusive a arte, pode estar acima dos ditames da lei.

Muito bem, até aí concordamos em gênero, número e grau. Discordo, entretanto, do entendimento específico sobre a obra de Gil Vicente. Afirma D’Urso: “(...) entendo que a série “Inimigos” não deveria integrar essa mostra [Bienal de São Paulo]. Isso por fazer apologia ao crime, atacar a dignidade dos representados e atentar contra as instituições democráticas, representada pelo Presidente da República, entre outras figuras públicas internacionais, como o papa Bento 16”. Não vejo apologia ao crime, nem ataque à dignidade dos representados, muito menos contra as instituições democráticas. Aliás, quanto a esta última, parece-me mais um sintoma da síndrome de exageros que vitimou alguns dos nossos doutos juristas, somando-se ao enquadramento do presidente Lula como fascista, imputado por José Carlos Dias e Miguel Reale Júnior.

No tocante à apologia ao crime, bem, proibamos todos os filmes de Sylvester Stallone, Jean Claude Van Damme e congêneres, quase todos os funks cariocas, os videogames, etc. Essa discussão já não havia sido superada? É o velho pensamento de que o público não sabe distinguir representação artística de realidade e precisa, coitado, da tutela do Estado para que não faça nenhuma bobagem. Data máxima vênia, enxergar apologia ao crime pelo simples fato de que as ilustrações mostram o próprio autor assassinando personalidades conhecidas, além de cercear uma forma legítima de expressão do artista, também pressupõe uma inteligência assaz diminuta do público e de sua capacidade de exercício da cidadania. A propósito, alguém imagina uma pessoa induzida a matar Lula ou FHC, influenciada pelas ilustrações de Gil Vicente? Ou, pior, que esta seja a pretensão do artista com sua obra?

Sobre a dignidade dos representados, muito embora não pense que a personalidade pública – ou, para usar um jargão atual, a celebridade – é sempre pública, 24 horas por dia, não acredito que a obra se refira aos indivíduos, mas à sua representação pública. Daí, não se referindo à pessoa da celebridade retratada, mas à sua representação pública, que afeta a todos, passa a ser legítima a crítica que a obra busca atingir. Sim, Lula, FHC e o papa Bento 16 merecem respeito. Contudo, o que Gil Vicente faz é trabalhar com as figuras, as imagens públicas dessas pessoas, não atingindo seus indivíduos propriamente.

Quando vi algumas dessas ilustrações, lembrei-me de Andy Warhol, sua genial Pop Art, com a qual tomava os rostos de celebridades como Pelé, Marilyn Monroe e Mao Tsé-Tung, misturava-os às imagens de Mickey Mouse e/ou de uma garrafa de Coca-Cola, demonstrando que tais imagens constituem ícones, onipresentes na retina e no imaginário da nossa sociedade contemporânea: sociedade do espetáculo, sociedade de massas, sociedade das mercadorias e da publicidade, sociedade das imagens. Ou seja, o rosto de uma celebridade extrapola seu próprio indivíduo e passa a ser reconhecido e reproduzido em todos os cantos. Passa a fazer parte do mundo real e imaginário de todos. Veja o exemplo da famosa foto que Alberto Korda fez de Che Guevara, hoje vista até em bandeiras de torcidas de futebol.

Aliado a isso está o sentimento de explosão frente à ordem constituída, também representada nos líderes políticos retratados por Gil Vicente. Se D’Urso aponta a necessidade de preservação das instituições democráticas, a crítica a elas é direito legítimo a constar da própria democracia. Eis a crítica do artista, como que a dizer – igual, aliás, ao que pensa o cidadão comum, em um dos muitos momentos de frustração com as instituições e pessoas que as dirigem – “quero que morra esse Bush, essa rainha Elizabeth, esse Ariel Sharon!”. Na verdade, nem Vicente, nem ninguém, se propõe a matar alguém fisicamente, mas sua representação pública, sua imagem, a estrutura política e institucional em que se sustentam. Negar o direito a esse protesto é negar o mínimo de vazão das decepções constantes que têm a quase totalidade dos cidadãos, além de afirmar algo falso: que para ser democrático é preciso aceitar as coisas como estão, sem que possam ser transformadas ou mesmo subvertidas.

Eis a minha discordância em relação ao presidente da OAB/SP. Mas, em nome da democracia e da liberdade de expressão que, cada um da sua forma, procura defender, faça-se a discussão. Por ora, enquanto não há decisão judicial proibitiva, tomo a liberdade de exibir algumas das imagens da série “Inimigos”.






Em tempo: em 2008 foi exibido nos cinemas de São Paulo e do Rio o filme “A morte de George W.Bush”, do inglês Gabriel Range. O filme tratava justamente disso: do assassinato (fictício) do ex-presidente americano, personalidade também retratado por Gil Vicente. Não me lembro de nenhuma ação intentando proibir a exibição da película.

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