quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Terra da música linda

 A chegada foi complicada, a fila era quilométrica, encontrar um táxi para voltar, uma tarefa hercúlea. Do instante em que saí rumo ao estádio até o momento em que cheguei em casa foram-se quase 12 horas! Para piorar, o dia seguinte era dia de trabalho. Minha única vantagem é que no domingo, quando assisti ao show, não choveu, diferentemente da segunda. Todas as dificuldades, porém, não tiraram em nada a beleza e a emoção proporcionadas por essa lenda chamada Paul McCartney. Quando cheguei em casa, às 2 da matina, o sorriso ia de orelha a orelha, e ainda tive disposição para escutar um cd dos Beatles e ver as fotos tiradas durante a apresentação.

Mesmo sabedor de sua condição de mito, “Sir” Paul esbanja simpatia e simplicidade. Aliás, é um gigante da música também por isso. Ao chegar ao Morumbi, ainda à tarde, Paul revelou-se da janela do carro que o levava e acenou às milhares de pessoas que formavam a imensa fila. Durante o espetáculo, a postura não foi diferente. Paul cativava o público, esboçava frases em português, muitas vezes lidas em textos colados no chão. “Tudo ótimo?”, perguntou, num carregado sotaque britânico. “Tudo!”, foi o grito sincero ecoado da multidão de fãs.

Quando Paul cantou All My Loving, a impressão foi de ter ocorrido um terremoto. Tive a sensação de que testemunhava um acontecimento inexplicável, histórico, lendário, mágico, antológico, sei lá. Como se Beethoven, em pessoa, executasse a Nona Sinfonia ou Elvis Presley, ressuscitado – se é que morreu –, cantasse Love Me Tender. Creio que a maioria das pessoas ali presentes, eu inclusive, aprenderam a conceber os Beatles como uma banda mítica, além da realidade, própria do mundo dos deuses. No entanto, ali estava, em carne, osso e voz, um daqueles garotos de Liverpool. E os 68 anos do ídolo não lhe tirou o status (perpétuo?) de garoto. A presença de McCartney produziu em nossas retinas e mentes uma viagem a um passado real ou idealizado (para quem não o viveu de fato): de repente, estávamos todos nos revolucionários anos 60.

A aura mágica do show persistiu durante todo o tempo. Quando Paul foi ao piano de cauda e cantou The Long And Winding Road e, mais adiante, Let It Be. Quando, em um outro piano, ao estilo psicodélico de Magical Mistery Tour, tocou e cantou Hey Jude. Quando assumiu a postura de roqueiro e executou, auxiliado pela ótima banda, Day Tripper, Get Back, Helter Skelter. Quando partiu para as baladas ao violão: And I Love Her, Blackbird, Yesterday. Quando “explodiu” o palco com Live And Let Die. Quando homenageou sua gatinha Linda (My Love), seu amigo John (Let Me Roll It e Give Peace a Chance) e seu amigo George (Something).

Em determinado momento, Paul se referiu à satisfação de retornar ao Brasil, emendando: “Brasil, terra da música linda”. A frase não era demagógica. É sabido que McCartney aprecia a música brasileira. Tanto que foi conferir apresentação de “nosso” Ivan Lins em Nova York, em 2001, quando do lançamento do disco “Jobiniando”. Tanto que, na apresentação da segunda-feira, brincou com a platéia por conta da chuva, emendando um “chove, chuva”, conhecida música de Jorge Benjor. E, se o ex-beatle aprecia a música brasileira, não é menos verdade que nossa música sofreu influência do grupo. Gilberto Gil, por exemplo, confessou que os tropicalistas miravam-se diretamente nos Beatles e o rock da Jovem Guarda também sofria influência direta da banda inglesa. Ou seja, influência que atingiu, ninguém mais, ninguém menos, que Caetano, Gil, Gal, Betânia, Mutantes, Erasmo, Roberto Carlos.

Aliás, há que se contar nos dedos quem, no Brasil ou fora dele, faz música boa e não sofreu influência dos Beatles. No caso específico da passagem do rock ao pop, a banda foi uma das principais, senão a principal ponte. Impulsionaram o estilo nascido nos anos 1950, com Elvis, desenvolvendo-o ao longo da carreira, nos anos 60. Com o psicodelismo, com a influência de sons indianos, com experimentalismos que levaram a um esboço do que viria a ser a música tecno (ex: o trecho final de A Day in The Life) ou do heavy metal (ex: Helter Skelter é som da pesada).

Só que a riqueza dos Beatles não se limita à música. Assim como expressam como ninguém as inovações musicais dos anos 60, também sintetizam de forma ímpar a revolução cultural e comportamental dessa época. O “princípio” do sexo, drogas e rock’n roll está intimamente ligado à imagem da banda: liberdade sexual e de comportamento, crítica às posturas tradicionais, valorização dos jovens em sua busca por uma identidade própria, crítica aos dogmas religiosos, crítica à cultura de guerra, busca por espiritualidade, etc., tudo isso, de uma forma ou de outra, aparece na extensa obra beatleniana. A propósito, vai além do grupo: com as mensagens de paz, amor e liberdade de John e Paul, ou mesmo na militância deste, às vezes ridicularizada, em defesa do vegetarianismo e pela proteção aos animais.

Em suma, se há uma revolução musical nos Beatles, também há bandeiras por uma revolução cultural e comportamental. Isso explica porque os “beatlemaníacos” renovam-se a cada geração. Porque no show antológico do Morumbi havia 64 mil pessoas, de 14 a 80 anos, cantando, absolutamente comovidas, encantadas.

McCartney está certo: o Brasil é a terra da música linda. De uma outra forma, muito especial, também o foi nesse dia inesquecível em que tive o privilégio de vê-lo cantar.

Sim, Sir Paul: está tudo ótimo!

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