Glauber Piva
O ano começou muito agitado para os militantes de cultura no Brasil. A mudança de governo e no Ministério da Cultura, somadas à vontade de participar, fizeram muita gente arregaçar as mangas e alimentar polêmicas. Tensões exageradas à parte, o debate em si é positivo, mas poderá ser mais frutífero se houver real disposição de enfrentar problemas sobre os quais estamos recostados há muito tempo. A aprovação, pela CNIC – Comissão Nacional de Incentivo à Cultura –, de um projeto de blog da Maria Bethânia mobilizou muitas brasileiras e brasileiros nas redes sociais, na imprensa e nas ruas. Ao fundo, uma colcha de retalhos, com opiniões tão diversas quanto intensas.
Reduzido o volume, talvez seja o momento de compreender o que há de mais sério e profundo neste debate. Não vou, aqui, debater exatamente o caso “Maria Bethânia”, mas iniciar um debate sobre o modelo de financiamento à cultura no Brasil, hoje, preponderantemente dependente de incentivos fiscais.
Para entender. O sistema federal de financiamento da cultura no Brasil está assentado sobre três mecanismos com finalidades distintas: o mecanismo do apoio direto do Estado a fundo perdido praticado por meio do Fundo Nacional de Cultura – FNC –; o mecanismo da renúncia fiscal para que empresas ou pessoas naturais apliquem parte do seu Imposto de Renda devido em projetos culturais em troca de divulgação de suas marcas; e o mecanismo do fundo de financiamento (FUNCINES e FICARTS) e certificados de investimento (artigo 1º da Lei do Audiovisual), que permitem utilizar recursos advindos do benefício fiscal para investir em projetos culturais em troca de participação nos resultados e exposição de marca.
A criação desse sistema foi impulsionado pela defesa da necessidade de se criar no Brasil uma cultura de patrocínio privado, que derivou de um discurso ideológico em relação à capacidade do Estado de gerir os investimentos em cultura (resultado de dois movimentos: do neoliberalismo contra o Estado do início dos 90; e da memória aos abusos do Estado autoritário dos anos 70 e 80), atribuindo ao “mercado” a decisão sobre “onde” e “como” investir.
Na época, este discurso ganhou apoio, pois, de fato, com a implementação do incentivo fiscal, algumas empresas perceberam que parte do dinheiro destinado inicialmente ao pagamento de tributo serviria para contribuir nas suas estratégias de marketing, associando sua marca a projetos artísticos com apelo popular ou com valor humanístico e social.
Com o passar do tempo, alguns departamentos e agências de comunicação que detinham as contas de publicidade dessas grandes empresas deixaram de esperar projetos com os quais as suas marcas pudessem se identificar, encomendando-os aos artistas. Essa lógica redundou em eventos com o nome de marcas de cigarro, cervejas e congêneres. Nesta mesma perspectiva, foram criados institutos e fundações de empresas onde até o material de escritório, por meio de uma operação contábil, era comprado com dinheiro público. Por outro lado, as ações dessas instituições nem sempre ampliavam o acesso dos cidadãos brasileiros a esses bens e serviços financiados com dinheiro público.
Inversão mais aguda ainda estava por acontecer quando o próprio Estado percebeu uma forma de, também ele, se beneficiar desse recurso para realizar os seus projetos. Foi aí que nasceram as Organizações Sociais “chapas-brancas” e toda sorte de subterfúgios que transformaram os diversos níveis federativos em grandes captadores de recursos por meio da Lei Rouanet. Sem entrar no complexo debate sobre a legitimidade de organizações desse tipo, o fato é que a conjugação entre inadequação da burocracia, falta de recursos orçamentários para os órgãos de cultura e possibilidades criadas pelas leis de incentivo produziram o estranho efeito de um Estado que buscou uma maneira de se privatizar para acessar verbas públicas.
O projeto de mudança da Lei Rouanet encaminhado pelo Ministério da Cultura ao Congresso Nacional em 2010, denominado PROCULTURA, não promovia transformações radicais neste sistema de financiamento, mas tentava enfrentar algumas de suas contradições e dicotomias, dando outro perfil para o incentivo à cultura e buscando novos equilíbrios entre os diversos mecanismos.
A formulação desse projeto consumiu claudicantes seis anos, aproveitou o debate promovido por diversos seminários, fóruns e pela primeira Conferência Nacional de Cultura. Nada disso evitou, porém, que o projeto enviado ao Congresso padecesse de falhas técnicas, inseguranças conceituais e um excesso de subjetividades impróprias para uma lei, gerando insegurança em diversos setores culturais, que não se sentiram contemplados pelo projeto, e acusações de dirigismo, que terminaram por estigmatizá-lo.
Parte dos problemas verificados no PROCULTURA foi sanada pelo substitutivo apresentado pela Deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), mas, mesmo essa nova versão – que hoje ainda tramita em comissões da Câmara – não evita a desproporção entre os muitos recursos alocados para renúncia e a frágil constituição do Fundo Nacional de Cultura.
Neste bom momento de ânimos exaltados, é importante promover a correção dessas distorções e ponderar sobre a criação de mecanismos adequados para a estruturação de cadeias produtivas e arranjos produtivos locais ligados à cultura, sem, no entanto, levar à desestruturação das incipientes indústrias culturais que hoje dependem do acesso aos recursos disponibilizados pelo Estado por intermédio do incentivo fiscal para existir.
Novas tecnologias têm impactado na aceleração das mudanças dos modos de produção e o campo da cultura já desenvolve novos padrões de produção e circulação de valores que resultam em novos paradigmas, não só para a Cultura, mas para o conjunto da economia. O sistema de fomento precisa ser capaz de dialogar com essa nova realidade com mais agilidade, criando formas de apoio sem, contudo, diminuir a intensidade do incentivo às modalidades das indústrias culturais. Há ainda uma série de outras atividades de interesse público que não vêm sendo devidamente apoiadas por meio do nosso sistema público de financiamento, mas que são fundamentais para que se estruture no Brasil as cadeias produtivas da cultura e um ambiente de autonomia criativa e livre circulação de conhecimento fundamental para a consolidação da própria democracia.
A discussão sobre o modelo do financiamento à cultura no país não deve ser feita apenas considerando as alternativas legais ou institucionais que já temos. Não devemos apenas reformar a legislação para adequar os mecanismos e formular melhores critérios de incentivo, mas também ampliar a governança do Estado sobre os recursos elaborando distintas modalidades de fomento, conferindo maior agilidade e ampliando as possibilidades de operação.
Hoje, o Estado brasileiro já tem iniciativas de fomento que, em tese, deveriam ser suficientes para a estruturação dessa economia ou atendimento de demandas culturais dispersas. No entanto, persiste uma sensação de ineficiência dos mecanismos atuais. Essa sensação tem várias origens: algumas, relacionadas ao aparato burocrático pesado e, outras, às poucas modalidades de fomento. Derivam também do fato de que as ações de fomento à cultura estão dispersas em diversas estruturas da Administração Pública Federal, o que não favorece a racionalidade e a economicidade dos processos, além de facilitar os constantes embates acerca dos parâmetros para avaliação, acompanhamento e fiscalização.
O projeto de lei PROCULTURA, como aprovado na comissão de Educação e Cultura no ano passado, proporciona alguns avanços importantes, como a regulamentação do repasse entre os entes federados. Mas é importante perceber, também, que não há mecanismos alternativos de fomento à renúncia fiscal e ao fundo perdido – com exceção do audiovisual, que conta com os FUNCINES e o Fundo Setorial. Com isso, uma série de atividades fica alijada do apoio estatal.
Objetivamente: precisamos desenvolver uma diversidade de mecanismos de apoio e fomento direto que correspondam melhor à diversidade de estratégias elaboradas pelo setor cultural. Não podemos contar com soluções mágicas, mas considerar que a complexidade dos desafios exige soluções sistêmicas.
Tal diversidade de mecanismos não deve implicar em dispersão da governança, muito pelo contrário. É necessário criar um agente financeiro subordinado ao Ministério da Cultura que permita adotar procedimentos e metodologias específicas mais aderentes aos processos produtivos e distributivos típicos da Cultura e que, ao mesmo tempo, concentre e racionalize a gestão dos mecanismos de fomento, deixando ao Ministério e suas diversas áreas finalísticas o papel estratégico de elaborar as diretrizes de política pública.
Para a Ciência e Tecnologia, por exemplo, o governo brasileiro concebeu a FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos - um agente financeiro com múltiplas possibilidades de financiamento. A cultura precisa de algo semelhante, ou seja, uma empresa pública instituída pelo Governo Federal com finalidade de promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil por meio do fomento público à Cultura.
Uma empresa com esse formato poderia operar uma gama diversificada de mecanismos, combinando investimento reembolsável e não reembolsável; financiamento com encargos reduzidos ou com juro real zero; microcrédito; fundos de aval; equalização de juros; poderia se especializar nas técnicas de conveniamento e ferramentas de informação de modo a qualificar a gestão estatal; e também promover Programas Especiais de Fomento (como já é feito hoje na ANCINE) combinando recursos federais com os oriundos de Estados e municípios para formar editais que combinassem abrangência regional e incentivo a elos específicos das cadeias produtivas.
A criação de um agente financeiro no âmbito da cultura, permitiria que o Ministério da Cultura fosse mais ágil e plural na indução da estruturação dos diversos modos de produção e difusão da cultura no Brasil, em virtude da multiplicidade de possibilidades que se abririam, e veríamos o Estado brasileiro se constituir efetivamente como um parceiro da cultura, reduzindo processos burocráticos. O Fundo Nacional de Cultura ganha um braço operador e muda de sentido, ganhando possibilidades mais interessantes e diversificadas de operação.
Diversos estudos demonstram que a economia da cultura ganha cada dia mais relevância na composição da riqueza das nações, novas possibilidades tecnológicas são criadas e demandam novos ordenamentos jurídicos e novos arranjos institucionais. Isso tudo nos obriga a ser propositivos e buscar para o nosso setor todas as ferramentas necessárias ao seu melhor desenvolvimento.
Glauber Piva, diretor da ANCINE
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