segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Clara vai às compras

* Adaptado do texto "Amos nos tempos de câmera"- Cena II, de Ana Rüsche, (Dramamix 2007 - Coleção Primeiras Obras, 10, Ivam Cabral, organizador. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo)


Poucos lugares são tão insalubres quanto a praça de alimentação de um shopping center na hora do almoço. Para Clara, o almoço é um afazer tormentoso, não um momento de descanso. Preferiria trabalhar as oito horas ininterruptamente. Após longos dez minutos de tentativas infrutíferas, radicalizou: sentou-se no chão para devorar o insosso fast food. Mais do que o desconforto para comer, incomodava-lhe a câmera no canto alto esquerdo; parecia persegui-la, vigiando sua conduta, julgando seus modos “à mesa”. Se falasse, a câmera diria: que homem é capaz de suportar uma mulher que come sentada no chão de um shopping center?

Finda a refeição, depositou o lixo no local apropriado, tal qual um adestrado frequentador de McDonald’s. Pediu um café no quiosque ao lado e abriu o livro cujas páginas percorria a duras penas. Não que lhe fosse custosa a leitura. Pelo contrário: adorava livros e, em especial, adorava Gabriel Garcia Márquez. Mas era obrigada a admitir: esse texto não lhe apetecia como os demais. Sobretudo, pela desagradável familiaridade. Quando, enfim, vingará o amor entre Florentino Ariza e Fermina Daza? Intrusivos, os personagens remetiam à própria busca vã de Clara em manter o amor que supunha ter construído. Não obstante, depois da briga de ontem, tudo parecia em ruínas. Ele até admitira a existência de uma outra. Seria verdade? Ou uma jogada infantil para lhe causar ciúmes? Se fosse verdade, será que ele realmente amava a outra? Como ela seria? Clara sorriu, nervosa, ao pensar que melhor seria identificar-se com Romeu e Julieta; estes, pelo menos, sacrificaram-se para eternizar o amor. Melhor a morte do que toda uma vida de desencontros.

Resolveu dar uma volta pelo shopping. Quase todas as lojas tinham promoções nas vitrines. Imaginou que ela própria, caso não reatasse seu namoro, seria também uma espécie de produto em promoção. Em todas as lojas via câmeras que captavam sua presença e a julgavam. Decidida a voltar ao trabalho, Clara descia rapidamente as escadas rolantes rumo à porta de saída, embora sobrasse um tempinho para gastar com indagações íntimas sobre o amor - será que ele ama mesmo a tal moça, será que me amava ou, apesar de tudo, ainda me ama? Sentia-se cada vez pior à medida em que observava as mercadorias expostas. Via-se como uma TV de plasma, um par de tênis ou um colar de brilhantes, à mostra, tentando provar-se atraente, valorizada e ao mesmo tempo acessível ao homem que lhe recompensasse com afeto, atenção... amor. Mas que diabos, afinal, significa amor?

De súbito, a loja de roupas íntimas sugou-a para dentro. Mal dera o primeiro passo, a maldita câmera de segurança voltou-se a ela, inquisidora: “o que faz aqui uma mulher solitária?” Calcinhas e baby-dolls dirigiram-lhe outra pergunta: “você nos deseja como armas?”. “Sim!”, respondeu resoluta, encarando a câmera como quem enfrenta a um inimigo mortal. Autoconfiança, já lera em alguma revista no cabeleireiro, era a alma do negócio. Hoje, posso até ser uma mulher solitária; mas, quem sabe, aquela lingerie não mudará o curso da história. Ato contínuo, lembrou-se das noites que passara com seu amado, das mãos argutas retirando seu sutiã. Sim, se o sutiã fora protagonista em tantos momentos, por que em outros não seria aquela lingerie?

Perdida em quimeras, Clara mal notou a aproximação da atendente. Num rompante, estava à sua frente uma sílfide e, com ela, uma sensação arrebatadora de impotência. A belíssima jovem, ostentando longos cabelos negros e sorriso encantador a deixou em pânico ao decifrar seus mais íntimos devaneios: “Gostou da lingerie, não foi? É infalível, já experimentei. E está em promoção”. A câmera, zombadora, voltou-se para Clara às gargalhadas: “Percebe, minha amiga, não basta valorizar-se como produto; é preciso enfrentar a concorrência”. Clara viu na atendente a dita cuja que lhe roubara o amor. Aliás, seria mesmo amor? Fitou-a, em inútil tentativa de se revelar soberana, mas incapaz de esconder a fragilidade. “Sim, gostei...”. A frase incompleta chocou-se como um desastre automobilístico na fala da atendente, endereçada ao homem que acabara de chegar. “Oi, amor. Espere um pouquinho, estou atendendo essa senhora, logo vamos almoçar”. Clara olhou para trás e a imagem a nocauteou como se fosse um cruzado no queixo. Não teve tempo para simular o semblante de quem estava sob o controle da situação. A única reação possível foi mudar a direção do olhar, buscando desesperadamente esquivar-se da atendente, do homem, da lingerie e da câmera. Mesmo cabisbaixa, não conseguiu deixar de ler a os dizeres no balcão: “Sorria, você está sendo filmado”.

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