João Pereira Coutinho
Passei uma parte da adolescência com a revista "Playboy". Culpa de um familiar, que a consumia primeiro e a deixava na mesa de cabeceira depois.
Dito e feito: aos sábados, almoçava na casa dele como um menino aprumado. E, quando os comensais ainda estavam na sobremesa, eu mostrava certo enfartamento, levantava-me sem fazer ondas e ia repousar na biblioteca.
A biblioteca era um pequeno banheiro nos fundos da habitação, onde tive longos colóquios com Maitê Proença, Vera Fischer e Luiza Tomé.
Ainda hoje, a caminho da meia-idade, penso nas fotos de Luiza Tomé e sinto o tipo de estremecimento que Stendhal detectou em certos turistas girando pelos monumentos de Itália. Nunca desmaiei, é certo, mas, já que falamos no assunto: onde anda você, Luiza? Não escreve, não telefona, não diz nada.
A "Playboy" era educação estética. Mas era também formação cultural. Parece piada: folhear a "Playboy" pelos contos e ensaios.
Não era. A primeira vez que ouvi falar de Graham Greene, foi na "Playboy". O mesmo para Nabokov, Amis (pai) e Amis (filho). Se os li na edição brasileira ou na edição americana, é difícil dizer. Consumia ambas. Nunca discriminei.
Mas, para ficarmos no Brasil, o melhor de tudo eram as entrevistas.
Recordo, com gratidão sincera, uma conversa notável com Roberto Campos, na qual o economista elaborava uma das defesas mais inteligentes do capitalismo que li em qualquer língua.
Uma das observações mais sagazes de Campos era, ironia das ironias, uma evocação de Marx: a ideia de que, sem produzir em abundância, não há riqueza para redistribuir. É tudo "die alte Scheisse" ("a mesma merda").
Muitos intelectuais de esquerda, na impossibilidade de lerem Marx, deveriam ler essa entrevista.
Ou outras. O que acontecia com os escritores, acontecia com certos políticos: um tal de "Lula" foi-me apresentado pela "Playboy".
As considerações econômicas do sindicalista eram de um primitivismo embaraçoso, confesso. Mas, depois, Lula mostrava um tal desprezo por Caetano Veloso e Gilberto Gil (juro, juro), que simpatizei logo com o personagem.
Sem falar de Nelson Rodrigues. Já conhecia as crônicas do mestre, é verdade. Mas desconhecia que aos sete anos Nelson escrevera sua primeira história de adultério. Palavras do próprio. Onde estará essa história? Ruy Castro que nos esclareça.
Os sábados eram assim: repartidos entre as curvas do corpo e as contracurvas do espírito. E eu, na estupidez própria dos 12 ou 13 anos, pensava honestamente que um cidadão tinha direito aos seus segredos. Eu desaparecia uma tarde inteira com as revistas debaixo do braço. E ninguém notava.
Esse familiar notou. Semanas atrás, depois de uma doença demasiado longa e dolorosa para merecer comentário, o homem apagou-se. Fizeram-se as cerimônias fúnebres, disseram-se as palavras de circunstância.
E eu, em frente ao caixão, enquanto meditava em todos os sábados do passado, recebi do filho dele a informação de que existia uma caixa na casa deles que me era destinada.
A caixa chegou hoje, com o conteúdo inevitável: as revistas. Ou o que sobrou delas: dezenas de números da "Playboy", até dezembro de 1999. Não sei por que motivo elas deixaram de ser consumidas na virada do milênio.
Sei apenas que eu as deixei de consumir anos antes, quando o desafio passou a ser encontrar Luizas Tomés fora do banheiro, não dentro dele.
Com a imaginação literária que o momento exige, ainda procurei um bilhete no meio da herança: uma explicação, um "sempre-soube-de-tudo", um aceno irônico do outro lado da eternidade. Em homenagem aos almoços interrompidos, talvez um "bom apetite".
Nada encontrei.
Faz sentido: os segredos de duas vidas não devem terminar quando termina uma delas.
Pelo contrário, devem continuar com a vida que fica. Por momentos, ainda pensei expor a coleção na melhor estante da sala.
Mas isso seria uma traição ao espírito da coisa. Melhor guardar tudo na mesa do quarto. Com sorte, haverá filhos ou sobrinhos que saberão o que fazer com elas.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/05/2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário