Fernanda Torres
Gosto muito de ler a revista
"piauí". É mesmo um milagre que alguém tenha tido a pachorra de
criá-la, e de maneira tão competente.
No número 70, na edição do mês de junho, o
posfácio de Mario Sergio Conti para a reedição de seu livro, "Notícias do
Planalto", explica, de certa forma, o porquê do espanto com a revista.
Mario traça um mapa da escalada do
marketing na política e na imprensa desde a eleição de Collor até hoje. Um dos
efeitos colaterais desta influência no jornalismo seria a proliferação de
colunas e cronistas, em detrimento das reportagens investigativas, mais
complexas, profundas e lentas de serem feitas.
A observação calou fundo em uma cronista
amadora como eu.
A cultura de massa triunfou de maneira tão
acachapante, que arriscar uma publicação com letras miúdas, poucas e boas fotos
e longas dissertações sobre temas não tão urgentes, é como remar contra a maré
com a vontade de um suicida. Não é à toa que João Salles, seu fundador, torce
pelo Botafogo.
A "piauí" era uma causa perdida,
fadada ao ostracismo editorial.
Hoje, suas páginas exibem grandes
anunciantes, e a publicação, notadamente, virou hábito para uma parcela pequena,
porém significativa, de leitores. Nada comparável à fartura das encadernações
de moda, decoração e culinária, mas, ainda assim, um feito.
Em uma época em que ser marginal é mais
sinônimo de incompetência do que de heroísmo, a revista conseguiu se popularizar
de forma indireta.
Na contramão das regras de mercado, acabou
pautando a própria imprensa. Fez isso com Dirceu, Dilma e Ricardo Teixeira; ao
mesmo tempo que selecionou artigos surpreendentes, como o do embate darwinista
sobre o altruísmo, o da debacle econômica islandesa e o sobre a dinâmica dos
fractais.
A massificação da arte e da informação
seduz quem produz e consome peças, novelas, livros, jornais e filmes. As
pesquisas de opinião dominam o comportamento, a moral, a política e o
entretenimento. Cada vez mais, a balança para medir o valor de uma obra é a sua
penetração no grande público e o retorno financeiro. É preciso reconhecer o
valor de quem fura o bloqueio.
Em um conselho da "piauí", do
qual fiz parte por um período, Luciano Huck, também conselheiro, deu uma
solução lapidar para o balanço da revista que, naquele momento, insistia em se
manter no vermelho. Ele sugeriu a criação de uma segunda revista, a
"ceará", repleta de celebridades, fotos, escândalos, receitas e
fofocas. A "piauí" seria mantida com o lucro da "ceará".
Luciano fez, com poucas palavras, o raio-X
da encruzilhada econômica da alta cultura, do alto jornalismo, da música
clássica, do teatro, das artes plásticas, do balé, dos museus e da cultura dita
erudita. É preciso produzir chiclete para assar brioches.
O ser ou não ser de qualquer intelectual
praticante é produzir algo que agrade a gregos e troianos, que instigue as
cabeças pensantes, ao mesmo tempo que alcance as multidões. Esse, não há
dúvida, é o milagre de Shakespeare, das tragédias gregas e de grande parte da
música popular brasileira, mas não é todo dia que acontece.
A saída ideal é a educação. A "New
Yorker" jamais venderá o que os tabloides vendem, mas gente suficiente a
consome para que ela continue existindo. Desconfio muito da apologia dos
grandes números, da glorificação do "Big Brother", como se o programa
fosse um estudo antropológico do comportamento humano. Não é. Ou é, na medida
em que tudo é, mas não vale um parágrafo de Jared Diamond.
Existe uma condenação velada à erudição. A
exaltação do popular é um posicionamento inatacável. Discordar dela, mesmo que
parcialmente, é como discursar em favor da monarquia em meio à Revolução
Francesa.
Sinto falta de Benedito Ruy Barbosa e
muito me toca a influência de Flaubert, Vitor Hugo e Eça de Queiroz na trama
das nove de João Emanuel Carneiro. Reconheço em Harry Potter o valor de
Cinderela, mas ainda considero "Providence" um dos maiores filme que
já assisti.
A "piauí" galgou seu lugar nos
revisteiros dos mais informados banheiros e consultórios médicos do país. No
dia que virar uma alternativa xiita nos salões de cabeleireiro, terá feito uma
revolução.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 03/08/2012.
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