quarta-feira, 9 de novembro de 2011

As cismas do Chico Margoso

Chico nasceu em tempo longínquo e lugarejo idem. Sétimo de família honesta, feita na lida sol a sol, Chico contou o exato filho do meio de dona Oscalina mais sô Jeromo. Antes e adiante dele vieram seis. Quem é escolado na cidade não enxerga o engenho da sorte. Ser o mediano de treze irmãos é condição sabida do dedo agourento do destino. Pois o Chico fez-se feio qual o cão: vida toda mirrado, feição de bicho do mato, fuça de caitatu, sobrancelha una, sem entremeio de pele, boca de velha banguela, quase todo pelado de cabeça e peito, olho zambaio. Não era só feitio de menino por pouco crescido, à espera do tempo que lhe trouxesse formosura alguma. No caso do Chico, o tempo passou demais sem lhe consertar o aspecto, sem lhe amparar em parca boniteza. Não tardou, a molecada da vila impingiu no coitado a alcunha de margoso que, à primeira zanga de contrariedade, pegou para nunca mais sair. Assim registrou-se no conhecimento do povo, Chico Margoso.
Ainda novo, mas já formado de labutar em ajuda do pai e de ter couro de levar guasca na bunda para remédio de arte feita, o Chico revoltou-se do fadário. Desatou a rogar pragas a torto e direito e, sacrilégio maior, a maldizer o todo-poderoso, baldado de gozo das coisas por conta de tamanha fealdade. No exato dia em que completou quatorze anos, veio à mente daquele hominho parvo uma ideia que lhe enfeitiçou o juízo qual façanha do tinhoso: só tinha morte honrada de homem macho, ainda que vivesse vida longa, vaso ruim, caso se casasse com uma paraguaia e matasse um homem. Não importava a ordem. Fosse qual fosse a paraguaia. Fosse qual fosse o homem.
Com dezoito anos, caiu de amores tão-logo avistou Guadalupe, filha do peão recém chegado de bandas mato-grossenses. Não era malfeita de cara e corpo, tampouco ostentaria coroa de misse. A rapariga era, por assim dizer, nem cheira, nem fede. Só que para o Chico era a mais graciosa criação de nosso senhor. Tanto insistiu que o velho peão seu pai, viúvo de nome Ambrósio, agradou-se do Margoso e concedeu a mão da filha em casamento. De mais a mais, Guadalupe era fraca das idéias, não lhe entrava ensinamento fácil na cachola, e o peão avistou em Chico amparo à descendente amalucada, além de liberdade para que ele próprio vivesse derradeiras aventuras. Só não revelou ao futuro genro o fraco da filha pancada: moça, moça, já não era, e costumava não resistir a homem feio. Explicado esteja.
Chico casou-se no dia em que seria o terceiro mais feliz de sua vida. O segundo foi o seguinte, o da lua-de-mel, não por causa apenas da luxúria consentida pela santa madre igreja, mas pelo que descobriu da boca da esposa. Confessou-lhe Guadalupe, ainda no leito de núpcias, ato contínuo à consumação do matrimônio, que a mãe morrera ao colocá-la no mundo, fardo pesado a carregar na alma. Disse também – motivando o regozijo do marido – que o parto e a morte não se deram em Pontã Porã, onde vivia a família, mas em súbita passagem por Pedro Juan Caballero. Sem entender o porquê, Guadalupe notou lágrimas a quedarem do estrábico cônjuge, emocionado de dar pena por sabê-la paraguaia pela terra onde caiu o umbigo, embora o sangue nele a jorrar fosse seu compatriota.
Anos passados, assumida a rotina de casal, eis que o Chico ao entrar em casa, retornado da labuta, deparou-se com cena terrível. Guadalupe na cama, como Deus lhe fez, de saliência com um caboclinho que elevava o Margoso a galã de novela. Tanto que Chico sentiu mistura de ódio, com desonra de corno e pavor da criatura que por instante duvidou ser do seu planeta e de sua espécie. O sujeito, ligeiro que só, sem esperar por nada, nem bronca, nem luta, sumiu em disparada janela afora. Visse o povo aquilo assim, entidade do demo, nu em pelo, em desabalada carreira, juraria tratar-se de chupa-cabra legítimo. Passado o susto do feioso e da vergonha, subiu no Chico vontade bruta de derriçar a libertina guarani, despelar todinha como se faz com milho. Espiou de través e enxergou a garrucha herdada do pai para caças e proteção do lar. Tomou-a em mãos e, tremendo mais que vara verde, percebeu o dedo empurrar o gatilho. A mira errou por muito, mas a bala varou pelo buraco da janela e, por explicação que ciência desconhece, feriu de morte o caboclinho fugitivo, afastado uma légua.
Nosso protagonista podia ter matado a esposa, não o fez por Deus. Dito assim, até soa profanação: Chico teve certeza de que suas cismas vinham do pai eterno, não do belzebu, como suspeitava. E a derradeira cisma era certa: matar homem, não mulher. Salvou-se Guadalupe com graça divina e o Chico, agradecido, perdoou a mulher, assim como foi perdoado pelos senhores de toga com uma prosa de legítima defesa.
Faz mais de ano que o Chico matou o homem. Foi o dia mais feliz da sua vida.
***
Em tempo: Chico Margoso realmente existe e, de fato, sempre falou das tais cismas. Pelo que sei, todavia, Chico jamais matou nem esposou alguém.

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