Acordo sempre no mesmo horário. Escovo os dentes e tomo o café de costume. Leio o jornal e reajo às notícias. Impiedoso, rogo pragas e penas aos culpados. Culpo a todos: policiais, estudantes e viciados, brancos e negros, presidente, ex-presidente e outro ex-presidente, ministro na berlinda, ex-ministro disso e daquilo, técnico, zagueiro e bandeirinha, evangélicos, gays e até o Papa.
Clamo pela moral e pelos bons costumes, ainda que abomine a expressão. Não concordo com a extradição de uns, lamento a expulsão de uns tantos, execro a permanência de outros. Discordo do arrocho, mas discuto com a diarista se o reajuste é acima da inflação. Culpo o governo pela corrupção, culpo a oposição pela corrupção, culpo os eleitores pela corrupção. Todos iguais, todos iguais!
Preparo-me para mais um dia de trabalho. Penteio o cabelo em estilo clássico. Uso roupas apropriadas. Vou trampar de bike, depois tomo os meus gorós. Passo o dia julgando quem atravessa meu caminho. Elejo inimigos. Transfiro inimigos à posição de amigos e vice-versa. Empunho a espada da indignação irada. Seleciono quem é “do bem” e quem é “do mal”. Sorrio ao lembrar que um dia ajudei o cego a atravessar a rua.
Alerto minha esposa sobre o recato. Tenho ciúmes às vezes, mas não aceito machismo. Sou adulto, vacinado, civilizado, cosmopolita e moderno. Adotei um poodle órfão. Jogo lixo no lixo: plástico, vidro, papel, orgânico e inorgânico. Já fui contra Belo Monte, agora não sei. Luto pelo bom senso e pelo bom gosto, jamais pelo senso comum.
Assisto aos problemas da humanidade sentado no próprio rabo. Peço menos arrogância e moralismo à medida em que me enxergo humilde e libertário. Despejo minha sabedoria no face; dependendo, vou pro blog; com preguiça, eu tuíto. Opino e participo. Denuncio a mídia sem tirar os olhos dela. Pagador de impostos, exijo respeito e serviços de qualidade. Vocifero com a atendente: amaldiçôo a musiquinha e ameaço a empresa que vendeu e não entregou.
Abro a porta e sigo a vida. Agora, sim. Sinto-me pronto para odiar os conservadores e operar a revolução.
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