Antonio Prata
Entro no bar, a vejo, vejo que ela me vê -e, durante o longo segundo que dura o resvalar de nossas pupilas, vivo aquele microdilema da vida social: vou até lá e dou oi ou abaixo a vista e finjo que não a reconheci?
Não lembro seu nome. Marcela? Margarida? Maristela, talvez. Faz uns dez anos, namorou um conhecido meu. Naquela época, dividimos a mesa duas ou três vezes, trocamos algumas frases -nunca os telefones-, mas ela sabe quem eu sou, eu sei quem ela é, e isso é razão suficiente para que eu tenha que dar oi. Ou não?
Ah, ser brasileiro dá um trabalho! Aposto que um finlandês de seis anos já sabe exatamente quem precisa cumprimentar, diante de quem pode passar reto, qual o grau de proximidade que permite apenas um tchauzinho, de longe.
Aqui, contudo, estamos sempre tropeçando nos cadarços desamarrados de nossa cordialidade. Um tchauzinho de longe é quase um insulto. Um oi deve necessariamente ser seguido por uma conversinha sobre o tempo, lamentos sobre o longo intervalo desde o último encontro, uma breve entrevista acerca dos parentes, cônjuges, amantes, amigos, inimigos, o cachorro e o papagaio, promessas de nos vermos mais, um convite para o almoço semana que vem, quem sabe restabelecer aquele futebol das terças, fundar uma revista literária ou voltar pra Caraiva; ah, 1997, aquilo sim é que foi Réveillon!
A brasilidade não admite meios tons: ou se é ou não se é, e com todo o peso de nossa desfraldada sociabilidade sobre minhas cansadas retinas, decido não ser; as volto para o chão, dou uma coçada na barriga, simulo grande interesse no piso, passo reto e sento no fundo do bar.
A culpa, contudo, é como uma espinha na bunda: espeta assim que botamos as nádegas na cadeira, e como o neurótico é um péssimo economista, que prefere pagar dez de juros aos cinco da dívida, tenho a ideia de jerico de ir até a garota -não apenas para dar oi, mas pedir desculpas e explicar que passei reto pois não a reconheci.
Mal termino de cumprimentá-la, vejo em seus olhos o brilho opaco do horror. Claro, ela tampouco pretendia me dar oi -e se um olá de passagem já seria trabalhoso, o que dizer dessa missão diplomática de Brancaleone?
O que se segue é uma cena de cartoon, os dois fugindo do silêncio como personagens subindo uma escada a desmilinguir-se: falamos sobre o tempo -"O dia mais quente em março, desde 1943!"-, sobre "o pessoal" -"A Ju? Agora, assim, não tô lembrando..."-, ela me diz que vai para o interior, na Páscoa- "Nossa, Páscoa, já? O ano voa!"- e que sua filha, Gabriela, vai ficar com a mãe. Empenhados em alimentar o papo, apressado e chocho como uma fogueira de jornais, não deixamos pausa para uma retirada. Estamos num labirinto, afundando na areia movediça da afabilidade e é ao me ouvir elogiando a qualidade das estradas paulistas que me dou conta: é tarde demais, jamais conseguirei romper aquele laço, estou condenado a continuar a conversa para sempre, adotar a tal Gabriela, aceitar a nova sogra, ir pro interior na Páscoa, conhecer a Ju -e torcer para que, até lá, eu lembre o nome daquela mulher. Marcela? Margarida? Maristela, talvez.
Às vezes, tenho inveja dos finlandeses.
Não lembro seu nome. Marcela? Margarida? Maristela, talvez. Faz uns dez anos, namorou um conhecido meu. Naquela época, dividimos a mesa duas ou três vezes, trocamos algumas frases -nunca os telefones-, mas ela sabe quem eu sou, eu sei quem ela é, e isso é razão suficiente para que eu tenha que dar oi. Ou não?
Ah, ser brasileiro dá um trabalho! Aposto que um finlandês de seis anos já sabe exatamente quem precisa cumprimentar, diante de quem pode passar reto, qual o grau de proximidade que permite apenas um tchauzinho, de longe.
Aqui, contudo, estamos sempre tropeçando nos cadarços desamarrados de nossa cordialidade. Um tchauzinho de longe é quase um insulto. Um oi deve necessariamente ser seguido por uma conversinha sobre o tempo, lamentos sobre o longo intervalo desde o último encontro, uma breve entrevista acerca dos parentes, cônjuges, amantes, amigos, inimigos, o cachorro e o papagaio, promessas de nos vermos mais, um convite para o almoço semana que vem, quem sabe restabelecer aquele futebol das terças, fundar uma revista literária ou voltar pra Caraiva; ah, 1997, aquilo sim é que foi Réveillon!
A brasilidade não admite meios tons: ou se é ou não se é, e com todo o peso de nossa desfraldada sociabilidade sobre minhas cansadas retinas, decido não ser; as volto para o chão, dou uma coçada na barriga, simulo grande interesse no piso, passo reto e sento no fundo do bar.
A culpa, contudo, é como uma espinha na bunda: espeta assim que botamos as nádegas na cadeira, e como o neurótico é um péssimo economista, que prefere pagar dez de juros aos cinco da dívida, tenho a ideia de jerico de ir até a garota -não apenas para dar oi, mas pedir desculpas e explicar que passei reto pois não a reconheci.
Mal termino de cumprimentá-la, vejo em seus olhos o brilho opaco do horror. Claro, ela tampouco pretendia me dar oi -e se um olá de passagem já seria trabalhoso, o que dizer dessa missão diplomática de Brancaleone?
O que se segue é uma cena de cartoon, os dois fugindo do silêncio como personagens subindo uma escada a desmilinguir-se: falamos sobre o tempo -"O dia mais quente em março, desde 1943!"-, sobre "o pessoal" -"A Ju? Agora, assim, não tô lembrando..."-, ela me diz que vai para o interior, na Páscoa- "Nossa, Páscoa, já? O ano voa!"- e que sua filha, Gabriela, vai ficar com a mãe. Empenhados em alimentar o papo, apressado e chocho como uma fogueira de jornais, não deixamos pausa para uma retirada. Estamos num labirinto, afundando na areia movediça da afabilidade e é ao me ouvir elogiando a qualidade das estradas paulistas que me dou conta: é tarde demais, jamais conseguirei romper aquele laço, estou condenado a continuar a conversa para sempre, adotar a tal Gabriela, aceitar a nova sogra, ir pro interior na Páscoa, conhecer a Ju -e torcer para que, até lá, eu lembre o nome daquela mulher. Marcela? Margarida? Maristela, talvez.
Às vezes, tenho inveja dos finlandeses.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/03/2012.
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