Fernanda Torres
A classe
artística é dividida. O cinema, apesar das divergências, sempre soube se
posicionar em bloco. O caráter industrial das artes e ciências cinematográficas
obriga o mais experimental dos cineastas a lidar com a tecnologia e o mercado.
Além disso, o poderio dos blockbusters iguala o mais comercial dos filmes
brasileiros ao mais autoral deles. Os ianques nivelam todo mundo por baixo.
Já no
teatro, as versões brasileiras dos musicais da Broadway enfrentam as mesmas
vicissitudes do empreendedor médio: alto custo da mídia, da produção, baixo
valor do ingresso e dependência da isenção fiscal. Mas a falta de um inimigo
comum acentua a cizânia.
Ouvi de
um colega que os teatros de shopping deveriam ser boicotados por serem os
responsáveis pelo vício do público em comédias ligeiras. Ficaríamos melhor sem
eles? Pensei. Resolveríamos o descompasso com o espectador? Ou reduziríamos
ainda mais o interesse vacilante da sociedade pelo que ocorre em cena?
Na minha
adolescência, o teatro tradicional, feito por produtores como meu pai, era
taxado de teatrão. Os grupos de pesquisa demonstravam insatisfação por ter que
dividir os parcos recursos com a vertente considerada antiquada. O teatrão
acusava as cooperativas de falta de consistência.
O Norte e
Nordeste se queixam do monopólio do sul, a periferia reclama da capitalização
dos grandes centros, os negros cobram uma reparação e os anônimos veem nos
ditos famosos, muitas vezes cunhados de globais, a razão de ser de seu
anonimato.
Como
criar uma política pública justa diante de tamanha Babel?
Perguntei
a Danilo Miranda, diretor do Sesc São Paulo, qual a sua opinião sobre o futuro
da Lei Rouanet. Miranda acredita que ela será modificada, e precisa ser,
segundo ele, para separar de maneira mais clara o que é marketing do que é
investimento em cultura em troca de isenção fiscal das empresas.
A
observação procede. Uma atenção maior do ministério para a linha tênue que
separa a publicidade do patrocínio fortaleceria os fundamentos da Lei Rouanet e
beneficiaria a todos democraticamente.
O Sesc
São Paulo sempre teve uma visão ampla de educação, cultura e lazer. Focado na
qualidade do que apoia e na população que pretende atingir, o Sesc oferece
desde aulas de macramê, até um centro de pesquisa teatral como o CPT, de
Antunes Filho.
Quando
prefeita, Marta Suplicy se baseou no modelo do Sesc para construir uma rede de
centros educacionais unificados, os CEUs, nos bairros carentes da capital.
Projetados
para servirem apenas à comunidade, o circuito da periferia paulistana acabou
entrando para o calendário das companhias nacionais de teatro.
Os
prefeitos que sucederam Marta tiveram a honradez de dar continuidade ao projeto,
ampliando sua política de ocupação. Hoje, os CEUs fomentam não apenas a cultura
do seu entorno, como também o teatro que se produz no restante do país.
Minha mãe
percorreu os CEUs com o espetáculo "Viver Sem Tempos Mortos", baseado
na vida de Simone de Beauvoir. Poucas vezes a vi tão impressionada.
Foram
oferecidas oficinas sobre o pós-Guerra e o existencialismo nos dias que
precederam as apresentações lotadas, repletas de pessoas que nunca haviam
pisado em um teatro. Sem demagogia, as educadoras elaboraram um trabalho
exemplar de formação de plateia, tão fundamental quanto a do artista, mas raras
vezes compreendido.
Quando
"Viver Sem Tempos Mortos" submeteu seu projeto ao Ministério da
Cultura, parte do órgão se mostrou avesso à sua aprovação. O assunto seria
elitista demais para uma política de inclusão e um monólogo com uma atriz
consagrada prescindiria do apoio da lei. O então ministro, Juca Ferreira, deu o
parecer favorável.
A ideia
de que a periferia deve consumir periferia e a elite, elite, subestima obra e
plateia. O "Viver..." é a prova de que a ligação de Simone e Sartre
não deixa de ser folhetim, assim como o Criolo prova que o hip-hop pode soar a
Sinatra.
Marta é
uma boa notícia para a cultura, um nome forte dentro e fora do partido.
Espero
que a ministra leve sua experiência dos CEUs adiante e que conduza o ministério
de forma a diminuir o arrivismo entre gregos e troianos.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/10/2012.
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