Marcelo
Rubens Paiva
Marx acreditava que o capitalismo continha em si o germe da própria
destruição - com suas contradições internas, como a exploração extrema do
proletário, o regime se desdobraria em tamanha injustiça que não seria mais
sustentável e daria lugar a uma nova forma social.
Na teoria, a revolução era iminente. Na prática, o capitão brasileiro Luís
Carlos Prestes se aproveitou da insatisfação de proletários, camponeses,
antifascistas e burgueses progressistas, arregaçou as mangas e, apoiado pela
Internacional Comunista, liderou um levante em novembro de 1935.
No Recife e em Natal foi instalado um governo revolucionário provisório.
No Rio de Janeiro não houve, como se esperava, sublevação espontânea. O
movimento foi derrotado em dias e recebeu o pejorativo nome de Intentona.
Foi o mais perto que o Brasil chegou da utopia socialista. E se tivesse
dado certo? Estaria no Wikipédia:
Depois da revolução, o tema do debate de abertura do Politburo carioca
foi: o que fazer com aquela estátua de braços abertos sobre a Guanabara que
representava o ópio do povo.
O líder Prestes não poderia acordar no Catete, dar um "guten
tag" para a primeira-dama, Olga Benário, ler a edição matinal da Classe
Operária, maior e único jornal em circulação, já que todos os outros foram
empastelados, e ver da varanda "o suspiro da criatura oprimida"
(Marx).
Ocorreram discussões acaloradas no Comitê Central. Os ilustres
comissários do povo propuseram:
1. Demolição irrevogável da estátua com o uso de dinamite.
2. Substituição por outra do mesmo tamanho de Marx e Engels. Seria uma
obra de engenharia utópica, já que os dois filósofos gorduchos não caberiam no
topo da montanha.
3. Substituição da estátua por uma de Prestes, este, sim, baixinho e
leve. Mas o próprio levantou dúvidas quanto ao culto precoce à sua
personalidade.
4. Substituição por uma de Lenin. Figura já muito batida e explorada
pelos camaradas russos.
5. Trocar por um grande trator em homenagem às fazendas comunitárias.
6. Trocar por uma foice e um martelo.
Mas um jovem arquiteto, que não aparentava a idade que tinha, figura
influente nas fileiras do partido, Oscar Niemeyer, propôs transformar o
turbante da estátua num macacão, incluir um capacete sobre a cabeça, erguer o
braço esquerdo e fechar os dedos da mão.
Em 1941, no aniversário de cinco anos da revolução, a tropa de
voluntários que embarcava para defender Stalingrado e Leningrado do cerco
nazista desfilou no Aterro do Povo e saudou a antiga estátua do Cristo
Redentor, rebatizada como Impávido Trabalhador.
O regime não teve muitos problemas com a literatura revolucionária.
Afinal, a maioria dos autores, como Oswald de Andrade, Jorge Amado, Graciliano
Ramos e Dias Gomes, era das fileiras do partido. Apenas um pornógrafo, Nelson
Rodrigues, porta-voz da crise do proletário suburbano, deu trabalho aos
censores.
Nas artes plásticas, Portinari liderou a estética do realismo socialista
tropical. O Cinema Novo rasgou o protocolo alienante do cinema americano e,
influenciado por Eisenstein, filmou a grande tomada do Campo dos Afonsos pelas
tropas lideradas por Prestes e a invasão do Paraguai, das Guianas e das Ilhas
Malvinas, que passaram a fazer parte da União das Repúblicas Socialistas
Brazucas.
A censura encontrou problemas num movimento pequeno-burguês iniciado no
final dos anos 1950 em Ipanema. Alguns pensaram em banir de vez aquele ritmo
que misturava jazz com samba e subsidiar outro que usava balalaica, tambores e
chocalhos.
Porém, o que mais deu trabalho foi intervir nas letras daqueles que
preferiam uisquinho a vodca.
Ninguém chegou a ser mandado pro trabalho forçado no Gulag Marajó.
Prontamente modificaram as músicas. Garota de Ipanema virou Trabalhadoras de
Ipanema Uni-vos!, e sua letra substituída por "olha, que coisa mais
determinada, mais cheia de metas, é ela a operária que vem e que passa, com o
balanço eficiente da linha de produção..."
Indignado mesmo ficou o consultor do povo, J.R. Tinhorão, com a música O
Pato. Propôs a substituição da letra por "o trator vinha arando
eficientemente, ram, ram, quando o camponês sorridente, comemorou a colheita,
colheita, colheita".
O autor João Gilberto só não foi expurgado porque um poeta também
simpático aos ideais da revolução, apesar de estar sempre de porre, Vinícius de
Moraes, interveio em carta pessoal ao partido, comovente e repleta de clichês
marxistas, que dizia: "Que eu possa me dizer da Internacional Socialista:
que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinita enquanto
dure".
Anos depois, como se não bastassem os probleminhas na Europa com a
Primavera de Praga, revoltas estudantis e a decadência do capitalismo
exemplificada pelo esvaziamento das barbearias da vanguarda revolucionária, o
Comissariado começou a se preocupar com a má influência de uns cabeludos que
organizavam um movimento chamado Tropicália. Apesar de não entender "nada,
nada!", mandou alguns deles colherem cacau na Bahia e prendeu uma banda
chamada Mutantes, provocativa e niilista.
Nos anos 1980 se iniciou uma détente que fez vista grossa à explosão do
rock brasileiro, cujos refrões "você não soube reformar", "a
gente não sabemos votar pro comitê central", "que união das
repúblicas é essa?" e "ideologia, não quero uma para viver"
foram espantosamente escutados nas rádios estatais.
Prestes veio a falecer em 7 de março de 1990, desapontado com a queda do
Muro de Berlim, o Nobel para Gorbachev e o fim do futebol arte. O Cavaleiro da
Esperança se tornou o líder mais tempo à frente de um país, 55 anos, recorde
imbatível. Seu concorrente direto, Fidel Castro, ficou "míseros" 49
anos. Apenas um político da República do Maranhão, José Sarney, pode ainda quebrá-lo.
No velório de Prestes, todos perceberam: questão de meses o colapso da
URSB e URSS. Não deu outra.
O governo posterior, de Roberto Freire, foi substituído pelo de Aldo
Rebelo, que baniu estrangeirismos russos, que levou um golpe do pagodeiro
Netinho, que rachou com chefe da polícia política, Zé Dirceu, o mais radical
dos extremistas, e mergulhou o país no caos.
Por fim, uma ruptura no regime reintroduziu a economia de mercado no
Brasil. O primeiro McDonald's foi aberto no Palácio do Povo, antigo Copacabana
Palace. Foi após comer um Big Mac que o poeta Ferreira Gullar, ex-membro do PC,
rasgou a sua carteirinha e saudou o novo regime declamando: "Dois
hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles num pão com
gergelim. Vem, capitalismo, vem, vim!"
O próprio Oscar Niemeyer, gozando de boa saúde e ainda sem aparentar a
idade que tinha, foi incumbido a desentortar o braço do Cristo.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 06/10/2012.
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