Publicado na Folha de S.Paulo, em 28/10/2012.
terça-feira, 30 de outubro de 2012
Gregos e troianos
Fernanda Torres
A classe
artística é dividida. O cinema, apesar das divergências, sempre soube se
posicionar em bloco. O caráter industrial das artes e ciências cinematográficas
obriga o mais experimental dos cineastas a lidar com a tecnologia e o mercado.
Além disso, o poderio dos blockbusters iguala o mais comercial dos filmes
brasileiros ao mais autoral deles. Os ianques nivelam todo mundo por baixo.
Já no
teatro, as versões brasileiras dos musicais da Broadway enfrentam as mesmas
vicissitudes do empreendedor médio: alto custo da mídia, da produção, baixo
valor do ingresso e dependência da isenção fiscal. Mas a falta de um inimigo
comum acentua a cizânia.
Ouvi de
um colega que os teatros de shopping deveriam ser boicotados por serem os
responsáveis pelo vício do público em comédias ligeiras. Ficaríamos melhor sem
eles? Pensei. Resolveríamos o descompasso com o espectador? Ou reduziríamos
ainda mais o interesse vacilante da sociedade pelo que ocorre em cena?
Na minha
adolescência, o teatro tradicional, feito por produtores como meu pai, era
taxado de teatrão. Os grupos de pesquisa demonstravam insatisfação por ter que
dividir os parcos recursos com a vertente considerada antiquada. O teatrão
acusava as cooperativas de falta de consistência.
O Norte e
Nordeste se queixam do monopólio do sul, a periferia reclama da capitalização
dos grandes centros, os negros cobram uma reparação e os anônimos veem nos
ditos famosos, muitas vezes cunhados de globais, a razão de ser de seu
anonimato.
Como
criar uma política pública justa diante de tamanha Babel?
Perguntei
a Danilo Miranda, diretor do Sesc São Paulo, qual a sua opinião sobre o futuro
da Lei Rouanet. Miranda acredita que ela será modificada, e precisa ser,
segundo ele, para separar de maneira mais clara o que é marketing do que é
investimento em cultura em troca de isenção fiscal das empresas.
A
observação procede. Uma atenção maior do ministério para a linha tênue que
separa a publicidade do patrocínio fortaleceria os fundamentos da Lei Rouanet e
beneficiaria a todos democraticamente.
O Sesc
São Paulo sempre teve uma visão ampla de educação, cultura e lazer. Focado na
qualidade do que apoia e na população que pretende atingir, o Sesc oferece
desde aulas de macramê, até um centro de pesquisa teatral como o CPT, de
Antunes Filho.
Quando
prefeita, Marta Suplicy se baseou no modelo do Sesc para construir uma rede de
centros educacionais unificados, os CEUs, nos bairros carentes da capital.
Projetados
para servirem apenas à comunidade, o circuito da periferia paulistana acabou
entrando para o calendário das companhias nacionais de teatro.
Os
prefeitos que sucederam Marta tiveram a honradez de dar continuidade ao projeto,
ampliando sua política de ocupação. Hoje, os CEUs fomentam não apenas a cultura
do seu entorno, como também o teatro que se produz no restante do país.
Minha mãe
percorreu os CEUs com o espetáculo "Viver Sem Tempos Mortos", baseado
na vida de Simone de Beauvoir. Poucas vezes a vi tão impressionada.
Foram
oferecidas oficinas sobre o pós-Guerra e o existencialismo nos dias que
precederam as apresentações lotadas, repletas de pessoas que nunca haviam
pisado em um teatro. Sem demagogia, as educadoras elaboraram um trabalho
exemplar de formação de plateia, tão fundamental quanto a do artista, mas raras
vezes compreendido.
Quando
"Viver Sem Tempos Mortos" submeteu seu projeto ao Ministério da
Cultura, parte do órgão se mostrou avesso à sua aprovação. O assunto seria
elitista demais para uma política de inclusão e um monólogo com uma atriz
consagrada prescindiria do apoio da lei. O então ministro, Juca Ferreira, deu o
parecer favorável.
A ideia
de que a periferia deve consumir periferia e a elite, elite, subestima obra e
plateia. O "Viver..." é a prova de que a ligação de Simone e Sartre
não deixa de ser folhetim, assim como o Criolo prova que o hip-hop pode soar a
Sinatra.
Marta é
uma boa notícia para a cultura, um nome forte dentro e fora do partido.
Espero
que a ministra leve sua experiência dos CEUs adiante e que conduza o ministério
de forma a diminuir o arrivismo entre gregos e troianos.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/10/2012.
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
Reconstruindo Cristo no Brasil comunista
Marcelo
Rubens Paiva
Marx acreditava que o capitalismo continha em si o germe da própria
destruição - com suas contradições internas, como a exploração extrema do
proletário, o regime se desdobraria em tamanha injustiça que não seria mais
sustentável e daria lugar a uma nova forma social.
Na teoria, a revolução era iminente. Na prática, o capitão brasileiro Luís
Carlos Prestes se aproveitou da insatisfação de proletários, camponeses,
antifascistas e burgueses progressistas, arregaçou as mangas e, apoiado pela
Internacional Comunista, liderou um levante em novembro de 1935.
No Recife e em Natal foi instalado um governo revolucionário provisório.
No Rio de Janeiro não houve, como se esperava, sublevação espontânea. O
movimento foi derrotado em dias e recebeu o pejorativo nome de Intentona.
Foi o mais perto que o Brasil chegou da utopia socialista. E se tivesse
dado certo? Estaria no Wikipédia:
Depois da revolução, o tema do debate de abertura do Politburo carioca
foi: o que fazer com aquela estátua de braços abertos sobre a Guanabara que
representava o ópio do povo.
O líder Prestes não poderia acordar no Catete, dar um "guten
tag" para a primeira-dama, Olga Benário, ler a edição matinal da Classe
Operária, maior e único jornal em circulação, já que todos os outros foram
empastelados, e ver da varanda "o suspiro da criatura oprimida"
(Marx).
Ocorreram discussões acaloradas no Comitê Central. Os ilustres
comissários do povo propuseram:
1. Demolição irrevogável da estátua com o uso de dinamite.
2. Substituição por outra do mesmo tamanho de Marx e Engels. Seria uma
obra de engenharia utópica, já que os dois filósofos gorduchos não caberiam no
topo da montanha.
3. Substituição da estátua por uma de Prestes, este, sim, baixinho e
leve. Mas o próprio levantou dúvidas quanto ao culto precoce à sua
personalidade.
4. Substituição por uma de Lenin. Figura já muito batida e explorada
pelos camaradas russos.
5. Trocar por um grande trator em homenagem às fazendas comunitárias.
6. Trocar por uma foice e um martelo.
Mas um jovem arquiteto, que não aparentava a idade que tinha, figura
influente nas fileiras do partido, Oscar Niemeyer, propôs transformar o
turbante da estátua num macacão, incluir um capacete sobre a cabeça, erguer o
braço esquerdo e fechar os dedos da mão.
Em 1941, no aniversário de cinco anos da revolução, a tropa de
voluntários que embarcava para defender Stalingrado e Leningrado do cerco
nazista desfilou no Aterro do Povo e saudou a antiga estátua do Cristo
Redentor, rebatizada como Impávido Trabalhador.
O regime não teve muitos problemas com a literatura revolucionária.
Afinal, a maioria dos autores, como Oswald de Andrade, Jorge Amado, Graciliano
Ramos e Dias Gomes, era das fileiras do partido. Apenas um pornógrafo, Nelson
Rodrigues, porta-voz da crise do proletário suburbano, deu trabalho aos
censores.
Nas artes plásticas, Portinari liderou a estética do realismo socialista
tropical. O Cinema Novo rasgou o protocolo alienante do cinema americano e,
influenciado por Eisenstein, filmou a grande tomada do Campo dos Afonsos pelas
tropas lideradas por Prestes e a invasão do Paraguai, das Guianas e das Ilhas
Malvinas, que passaram a fazer parte da União das Repúblicas Socialistas
Brazucas.
A censura encontrou problemas num movimento pequeno-burguês iniciado no
final dos anos 1950 em Ipanema. Alguns pensaram em banir de vez aquele ritmo
que misturava jazz com samba e subsidiar outro que usava balalaica, tambores e
chocalhos.
Porém, o que mais deu trabalho foi intervir nas letras daqueles que
preferiam uisquinho a vodca.
Ninguém chegou a ser mandado pro trabalho forçado no Gulag Marajó.
Prontamente modificaram as músicas. Garota de Ipanema virou Trabalhadoras de
Ipanema Uni-vos!, e sua letra substituída por "olha, que coisa mais
determinada, mais cheia de metas, é ela a operária que vem e que passa, com o
balanço eficiente da linha de produção..."
Indignado mesmo ficou o consultor do povo, J.R. Tinhorão, com a música O
Pato. Propôs a substituição da letra por "o trator vinha arando
eficientemente, ram, ram, quando o camponês sorridente, comemorou a colheita,
colheita, colheita".
O autor João Gilberto só não foi expurgado porque um poeta também
simpático aos ideais da revolução, apesar de estar sempre de porre, Vinícius de
Moraes, interveio em carta pessoal ao partido, comovente e repleta de clichês
marxistas, que dizia: "Que eu possa me dizer da Internacional Socialista:
que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinita enquanto
dure".
Anos depois, como se não bastassem os probleminhas na Europa com a
Primavera de Praga, revoltas estudantis e a decadência do capitalismo
exemplificada pelo esvaziamento das barbearias da vanguarda revolucionária, o
Comissariado começou a se preocupar com a má influência de uns cabeludos que
organizavam um movimento chamado Tropicália. Apesar de não entender "nada,
nada!", mandou alguns deles colherem cacau na Bahia e prendeu uma banda
chamada Mutantes, provocativa e niilista.
Nos anos 1980 se iniciou uma détente que fez vista grossa à explosão do
rock brasileiro, cujos refrões "você não soube reformar", "a
gente não sabemos votar pro comitê central", "que união das
repúblicas é essa?" e "ideologia, não quero uma para viver"
foram espantosamente escutados nas rádios estatais.
Prestes veio a falecer em 7 de março de 1990, desapontado com a queda do
Muro de Berlim, o Nobel para Gorbachev e o fim do futebol arte. O Cavaleiro da
Esperança se tornou o líder mais tempo à frente de um país, 55 anos, recorde
imbatível. Seu concorrente direto, Fidel Castro, ficou "míseros" 49
anos. Apenas um político da República do Maranhão, José Sarney, pode ainda quebrá-lo.
No velório de Prestes, todos perceberam: questão de meses o colapso da
URSB e URSS. Não deu outra.
O governo posterior, de Roberto Freire, foi substituído pelo de Aldo
Rebelo, que baniu estrangeirismos russos, que levou um golpe do pagodeiro
Netinho, que rachou com chefe da polícia política, Zé Dirceu, o mais radical
dos extremistas, e mergulhou o país no caos.
Por fim, uma ruptura no regime reintroduziu a economia de mercado no
Brasil. O primeiro McDonald's foi aberto no Palácio do Povo, antigo Copacabana
Palace. Foi após comer um Big Mac que o poeta Ferreira Gullar, ex-membro do PC,
rasgou a sua carteirinha e saudou o novo regime declamando: "Dois
hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles num pão com
gergelim. Vem, capitalismo, vem, vim!"
O próprio Oscar Niemeyer, gozando de boa saúde e ainda sem aparentar a
idade que tinha, foi incumbido a desentortar o braço do Cristo.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 06/10/2012.
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
Sem Hebe, um vazio enorme
Ignácio de Loyola Brandão
Ficou o vazio. Não há ninguém no lugar dela. Desde que foi eleita rainha do rádio, 60 anos atrás, e era morena de sobrancelhas grossas como as de Malu Mader (o que a envaidecia, vejam só, quando alguém dizia isso), Hebe reinou no Brasil. Absoluta, pode-se dizer. Nenhuma outra mulher da mídia teve um lugar como o dela no coração do público. Amada pelo povo, estudada pelos intelectuais mais sérios e respeitados como Sergio Micelli, que escreveu A Noite da Madrinha para entendê-la sociologicamente. Hebe não precisava de explicações. Fenômeno natural, era nossa amiga, irmã, mãe, namorada, amante, ídolo.
Havia quem a criticasse, a chamasse de brega, cafona. Quantas vezes ouvi isso? Como você pode gostar da Hebe? Eu gostava, milhões gostavam. Até quem dizia que não gostava gostava, por maior que seja o paradoxo. Não gostando, era só se aproximar dela para gostar. Poucas vezes vi uma pessoa com tal capacidade de seduzir. Porque tudo nela era autêntico, natural, solto, Hebe jamais representou. Foi grande o suficiente para ser relax, mesmo quando a vida à colocou duramente à prova, e a colocou inúmeras vezes.
Nos aproximamos nos anos 80, quando eu escrevia para o Shopping News, semanário que era distribuído gratuitamente aos domingos e atingia 500 mil pessoas. Hebe vinha sendo criticada violentamente por ser amiga do Maluf, certamente o contrário dela, um dos personagens menos amados deste Brasil. Defendi o direito dela ser amiga de quem quisesse, era um direito democrático. Nós escolhemos de quem gostamos e com quem queremos nos relacionar, independentemente dos outros, da opinião alheia.
Recebi um telefonema dela, convidou-me para jantar e tudo começou. A crônica, ampliada e emoldurada, estava na parede de sua casa. Nunca vi pessoa mais fiel. A cada livro, ela me buscava para seu programa. Fiquei admirado. Era só aparecer na Hebe e a venda de livros crescia. A madrinha tinha poder. Vez ou outra chegavam flores em casa. Ao encontrá-la num restaurante ou bar ou fosse o que fosse, vinha um selinho e um afago. Fui um dos "gracinhas" dela. Não foi uma, foram várias as festas em sua casa no Sumaré ou no Morumbi (foram duas as casas ali).
Certa vez, Andrea Carta, editor da Vogue, produziu uma revista inteira dedicada a ela. Devassamos sua casa, seus álbuns, realizamos um dos mais completos levantamentos da vida dessa mulher que por 60 anos foi ícone, símbolo. Ela abriu os cofres de joias, uma de suas paixões. Penetramos numa infinidade de closets onde havia centenas e centenas de vestidos, os mais esfuziantes. Tudo regado a vinho branco e a inumeráveis caipiroscas. Hebe era a rainha do brilho. O brilho das joias, dos vestidos, dos cabelos loiros, do sorriso eternamente entregue às pessoas, mesmo quando a dor a aguilhoava.
Em 1996, quando fui para o Hospital Albert Einstein para uma cirurgia de aneurisma, ela ligou cedo, 9 da manhã, para Marcia, minha mulher. "Ele está entrando no centro cirúrgico", Marcia informou. Três horas depois, nova ligação. A uma da tarde, outro chamado. Hebe estava ficando nervosa. Cinco, seis, nada ainda. "É grave assim?", ela perguntou. "É delicada e demorada", foi a resposta. Oito da noite, nove. Ao saber que eu continuava na mesa, Hebe não se conteve em lágrimas: "Puta que o pariu, meu Deus!", uma explosão autêntica, misturando palavrão ao sagrado, com temor e naturalidade. Contei isso em meu livro Veia Bailarina.
Seu programa sempre refletiu suas escolhas e idiossincrasias. Levava gente de quem gostava. As mudanças do mundo, da mídia, da sociedade, fizeram o Ibope cair. Poderia ter se aposentado, mas isso significaria sua morte. Mudou de canal para tentar mudar também. Nos últimos meses de sua vida, ficou sem receber os salários, uma indignidade. Silvio Santos teve o gesto de afeto, acolheu-a, deu-lhe um novo contrato. Hebe deve ter morrido em paz. Assinar um contrato significava vida. Porém, esta tem seus caminhos. Agora, fica o vácuo. Mulheres que com sua morte provocaram comoção nacional me lembro de três: Ruth Cardoso, Elis Regina e Hebe Camargo.
Ninguém que está aí e que tenta substituí-la tem o carisma, a força, o talento para ser Hebe. Ou, melhor, a nova Hebe. Uma outra Hebe. São pálidas imitações. Imagino neste momento, particularmente, a dor de algumas pessoas. A do filho Marcelo e a de Rosinha Goldfarb, Lolita Rodrigues, Regina, sua eterna produtora, e a do fotógrafo Petrônio Cinque, que a seguiu e a fotografou por décadas, documentando momento a momento uma vida inteira.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 05/10/2012.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Autran Dourado
Carlos Heitor Cony
No último domingo, morreu Waldomiro Autran Dourado, mineiro, 86 anos, nascido em Patos de Minas, autor de uma obra que vem sendo estudada, aqui e no exterior, apesar de sua discrição, que o tornou privilégio de poucos, na medida em que se dedicou quase integralmente ao ofício de escritor. Dono de um estilo inconfundível --mais uma técnica do que um estilo--, não cortejou a popularidade nem fez parte de grupos, isolando-se em seus contos e romances como o artista que foi.
Apesar de seu temperamento, avesso a qualquer tipo de palco, Autran conseguiu o reconhecimento crítico expresso num elenco de importantes prêmios internacionais. Um de seus livros, talvez o mais conhecido, "Ópera dos Mortos", foi apontado pela Unesco para integrar a coleção de obras representativas da humanidade.
Outro de seus romances, "Os Sinos da Agonia", foi escolhido para os exames de "agrégation" das universidades francesas.
"O Risco do Bordado" é uma obra-prima pelo tecido que lembra uma aranha a fiar sua teia, silenciosa, perfeita em sua estrutura muitas vezes luminosa.
Difícil catalogar Autran Dourado em qualquer escola ou geração. Como mineiro, pode lembrar Cornélio Pena ou mesmo Lúcio Cardoso. Não inventou palavras, mas soube usá-las de forma magistral, rompendo as frases de maneira tão pessoal que qualquer um de seus textos pode ser facilmente identificado. Não criou uma linguagem, como Guimarães Rosa, mas a usou de forma tão pessoal que o torna original, para não dizer único.
Secretário de imprensa durante o governo de JK, integrou a brilhante equipe liderada por Álvaro Lins e que contava com nomes de relevo no panorama cultural da época, como Augusto Frederico Schmidt e Antonio Houaiss.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/10/2012.
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Fim em si
Ruy Castro
Outro dia, mandaram-me um vídeo de um cantor japonês. Comecei a assistir. Cantor, canção e vídeo eram anódinos. O japonês estava de perfil. De repente, com um corte, a câmera mostrou uma cantora japonesa, também de perfil e também anódina. Finalmente, a imagem revelou: os dois eram um só, metade homem, metade mulher, divididos pela vertical, e com as vozes correspondentes. Não faz muito, esses exotismos eram coisa do "Acredite se Quiser", de Ripley, que saía nos jornais.
Todo dia recebo vídeos com imagens de desertos mexicanos, estepes russas, trigais espanhóis, geleiras polares e praias brasileiras. São de tirar o fôlego. Sem falar dos edifícios, viadutos e ilhas artificiais de Dubai. No passado, essas imagens saltavam das páginas da "Manchete" para a vida real e nos faziam babar.
E os vídeos sobre animais? Não param de entrar. São galinhas chocando cachorros, gatas lambendo esquilos desamparados e cadelas amamentando porquinhos órfãos. Em outros, veem-se golfinhos, pinguins e babuínos mais expressivos que certos atores de novela. Tudo isso, além de filmes sobre a vida sexual dos pernilongos, é material que, até há pouco, só se via em revistas como "National Geographic Magazine" ou no canal Discovery.
E, naturalmente, não falta quem mande fotos de estrelas do cinema que cometeram o erro de envelhecer e embagulhar. Ou de gente famosa em poses indiscretas, como a alemã Angela Merkel tirando meleca, Obama, com os sapatos furados, ou Kate Middleton, de topless. Enfim, o tipo de assunto que costumava ser privilégio das revistas de escândalos.
Em 1885, o poeta Mallarmé dizia que tudo no mundo existia "para acabar em um livro". Hoje, pode-se dizer que o mundo existe para acabar na internet. Com a qual ficamos dispensados até de sair à rua para fazer parte dele.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/09/2012.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
Em discussão: o racismo de Monteiro Lobato
No contexto
Luis Fernando Verissimo
Minha filha estava lendo uma história do Monteiro Lobato para a minha neta e parou quando chegou num trecho que falava na tia Nastácia. Hesitou, sem saber se lia o que estava escrito ou se exercia sua prerrogativa de leitora e mãe e pulava o trecho. Decidiu-se pela censura. Não me lembro se cheguei a ler Monteiro Lobato para meus filhos, mas tenho certeza de que não teria a mesma hesitação da Fernanda. Não me ocorreria que o texto era racista. Ou talvez ocorresse e eu o desculpasse, pois seria apenas um detalhe que em nada diminuía o imenso prazer de ler Monteiro Lobato. E escrito numa época em que o próprio autor não teria consciência de estar sendo ofensivo, ou menos que afetuoso com sua personagem. Entre os anos em que eu lia Lobato e hoje mudou tudo no mundo, inclusive o contexto em que o racismo, consciente ou não, é encarado.
Não seja mineiro.
O melhor quem é,
Messi ou Pelé?
Bem passado ou mal?
Internet ou jornal?
Água sem gás ou gasosa?
Lewandowski ou Barbosa?.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 20/09/2012.
* * *
O movimento negro, bem como outros grupos que tentam reduzir os níveis de intolerância na sociedade, tem toda a minha simpatia. Isso dito, é ridículo o que estão tentando fazer com Monteiro Lobato. Se a iniciativa legal, que já chegou ao Supremo, prosperar, o autor poderá ter parte de sua obra banida das bibliotecas escolares.
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